quarta-feira, 5 de junho de 2013

Poesia vulgar e extremamente est

Há quem escreva decassílabo heróico. Esteban Adonis (1986-2044) escrevia decímetro vulgar.
A criação deste estilo único, que implicou uma vida inteira dedicada à lavra de versos confinados em dez precisos centímentros, estará relacionada com meras casualidades: espacial e ingénua.
Esteban começou a escrever poesia aos 15 anos em blocos de post-its 10x15. Foi nesta altura que sentiu que a escrita o inebriava e os poemas como que lhe saíam em transe. Quando terminava um poema, reparava que o fim não ocorria sobre o post-it mas as palavras finais ficavam sobre a superfície em que escrevia. Esteban apenas guardava os post-its. Mais tarde, encontrámos isso mesmo na exposição "Estebanismo: espacio corto y eterno", que esteve no Museo de Arte Contemporáneo em La Paz, entre Março e Junho de 2039. Aqui pudemos contemplar os primeiros fins de rascunho numa toalha rendilhada de sua avó, numa toalha de papel do restaurante "Las Cucarachas" e numa mesa Läck branca.
Quando começou a mostrar os seus primeiros post-its aos amigos, o alento que recebeu foi imediato. Ruiz, Abel e Sergio leram os versos e entreolharam-se estupefactos. Nenhum deles havia percebido a poesia do amigo. Como eram alunos medianos, pensaram que o problema era deles e que aquilo devia ser altamente intelectual. Ademais, sabendo do feitio especial de Esteban e de ser ele o único proprietário duma bola de futebol do bairro, fez com que o congratulassem de forma efusiva e incentivassem a sua publicação.
Da vasta obra de Esteban, relevamos aquela que poderá ser considerada a sua obra-prima: Alice. Trata-se de uma recriação vulgar do livro Eneida. Se na obra clássica de Virgílio, assistimos à fundação da cidade de Roma por Eneias após uma fuga, com Tróia a arder como wallpaper, Esteban
conta-nos como Alice foge de Fornos de Algodres, abusada sentimentalmente pelo marido, para singrar no exílio como Madame.
Alice casa com Emídio. Ela: educada para desempenhar o papel de fada do lar. Ele: pastor e hermeneuta vitivinícola. Sentiu-se abusada logo na primeira refeição em conjunto, quando Emídio se ofereceu para fazer a salada enquanto ela terminava o cabrito. Alice não estava preparada para aquela intrusão. O que começou com uma salada, depressa escalou para um esparguete à bolonhesa e para um bacalhau com broa. Alice sentiu que não aguentava mais quando lhe foi proposto que esperasse na sala a ver televisão, enquanto ele terminava o peru recheado. E a mesa já estava posta! Apesar do cheiro agradável que emanava da cozinha, Alice partiu para longe, sem malas, sem dinheiro, apenas com dois rissóis de caranguejo que Emídio havia deixado na mesa como entrada.
Vendas Novas foi o destino e aí decidiu que construiria de raiz uma casa, onde fosse ela a protagonista e onde as pessoas dependessem dela para comer. Sentindo-se uma pessoa nova, fundou o restaurante "As mamãs tratam de ti", sem grande sucesso. Quando estava para fechar portas, chegou uma avalanche de pessoas, maioritariamente do sexo masculino, a dizer que queriam consumir. Curiosamente, foi mais ou menos ao mesmo tempo que o néon do til no nome do restaurante começou a falhar.
Vejamos esta passagem, uma das mais importantes, em que o restaurante se vai transformando em prostíbulo e Alice em Madame Alice:

"Que quereis daqui meu bom h
Não vedes vós que clientes não
E que a comida escasseia como
E que nem gás tenho para cozi
E quem são esses que trazeis a
Vimos o Vosso sinal Madame c
Reluzia para o céu e para o asf
Mas o céu e o asfalto não ilumi
Acendeu, sim, a fogueira interi
E a chama arde aqui no meu to
Comida escasseia pensais vós?
Mas vejo aqui nacos do Paraís
E gás não precisais para assar
Pois cozinho com o fogo que tr
Nem ajuda para descacar a fru
A que vos referis, pensais de al
Esperai que vaca tenho no con
Não precisais que essa aí me p
E comigo é sempre fast-food q
E cheios estão, vazios se irão."

Esteban Adonis falece em 2 de Maio de 2044, num quarto de hospital da cidade que o viu nascer, vítima de insufiência de vida.
Jaz no cemitério da Revolución de La Paz, em cuja pedra tumular podemos encontrar o epitáfio:

"A vida é isto: a tua contemplaçã(o da morte)
 Podiam ter avisado que as tinha (descaídas.)" 

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