quinta-feira, 4 de julho de 2013

O escritor que se esqueceu de escrever V

(continuação da continuação da continuação da continuação - parte 4 aqui)
  • Da Pasteurização do Corpo (2021), romance
No seguimento da investigação que desenvolveu para a peça de teatro O Verdugo Não Quer Ser Porteiro, Bruno lança este romance logo após o noticiamento que abalou o país, quando os meios de comunicação social revelaram que os últimos três directores do FPAS haviam desviado avultados fundos para fins pessoais. Ainda se pensou que a notícia pudesse ter sido veiculada anonimamente por Bruno, mas logo depois entra nas livrarias a sua visão pessoal acerca deste caso, sob a forma de romance.
Numa espécie de parábola, o romance trata de três directores de uma associação de surdos que, pouco depois de assumirem o cargo, ficam também eles privados de sons exteriores.
A súbita surdez de pessoas que até então estavam aptas nos cinco sentidos provocou grande comoção social. Grupos formaram-se na crença de que os directores ensurdeceram por osmose, numa espécie de missionação sacrificial. Outros aproveitaram-se para incutir a ideia de que as nomeações políticas não promoviam economicamente antigos dirigentes, bem pelo contrário, indo ao encontro da ideia dos grupos que enfatizavam o sacrifício.
A queda surge no último terço do livro quando Lourenço, bastardo do segundo director, revela aos meios de comunicação social que a surdez advém da pilotagem de biplanos. Os directores haviam transferido fundos da associação para contas pessoais e utilizado o dinheiro para adquirir biplanos e pagar a avença mensal no aeródromo de Maceda. A surdez surgia como consequência do barulho dos motores dos aviões.
O livro termina com o apedrejamento público dos três directores, que nem ouviram as pedras a partir-lhes os crânios.
Bruno tentou fazer passar uma dupla mensagem: se as pessoas criam os seus santos têm o direito, enquanto criadores, de os poderem matar; a surdez como decadência física adveio de uma cedência moral, daí o título do livro: a ideia de que o corpo se preserva pela consciência.  
  • Lúcia, a Vendedora de Santuários (2025), romance
Depois de quatro anos de silêncio e após ter sido presenteado com inúmeros ataques e pressões, inclusive um ataque de um enxame de vespas que lhe valeram duas semanas de internamento, Bruno regressa com um romance nada apaziguador.
De acordo com a sua autobiografia, lançada em 2032, esta história surgiu-lhe quando estava internado no Hospital Carmelita de Rilhafoles, a recuperar do ataque das vespas histéricas. Bruno terá descoberto no interior da velha cama de ferro um documento de compra e venda do santuário de Fátima ao Estado Português, datado de 1938. O romance versa sobre esta temática.
O grupo ultra-secreto, com o nome de JEOVAX, é especializado em mediação imobiliária de santuários. Os seus membros são recrutados dentre os párocos que conseguem angariar maiores esmolas. Até aqui tudo bem. Só que os santuários não abundam. É necessário criá-los.
Assim se inicia uma viagem aos meandros da gestação de espaços sagrados.
Lúcia, personagem principal do livro, actriz de profissão, é contratada para fazer de Maria em territórios inóspitos. Na sua primeira aparição, Bruno opera um comparativo irónico, ao colocar a aparição de Maria a par das aparições das figuras públicas em festas e discotecas, mostrando que as massas afluem ao encontro de figuras conhecidas, sob a luz da fama.
O modus operandi da JEOVAX é bastante simples:
  1. Escolhem um local semi-deserto com boa profusão de luz e som
  2. Contratam uma actriz (neste caso, Lúcia)
  3. A actriz engole 666 pirilampos
  4. Por meio de engodo (chupas ou rebuçados), fazem 2 ou 3 crianças aparecerem no local inóspito
  5. A actriz surge no topo de uma árvore, reluzente, com uma mensagem secretista
  6. Deixam o buzz marketing fazer efeito, coadjuvados pelo pároco local
  7. Romaria massiva ao local, com nova aparição da actriz, agora ainda mais reluzente, encandeando os fiéis e provocando uma cegueira colectiva, que faz os fiéis acreditar que viram a coisas que lhes disseram
  8. As terras, até então propriedade privada, passam para as mãos da JEOVAX, por uso capião da fé
  9. Investimento no local com novas infra-estruturas para valorização do terreno
  10. Venda ao Estado local do imóvel, ficando sempre na posse da patente do franchising
Entretanto, Lúcia conhece Henrique, jornalista de investigação, por quem se apaixona. Henrique começa a desconfiar de Lúcia, uma vez que deixa de conseguir dormir à noite, tal é a luz que ela emana. Ante o silêncio de Lúcia, Henrique enceta uma investigação que o leva ao âmago da JEOVAX.
Henrique interroga Lúcia e pede-lhe para ela tornar pública a informação que possui. No dia em que assente, Lúcia desaparece.
Henrique entra numa espiral de loucura. Estava duplamente perdido: sem amor, sem profissão.
Em jeito de epilogo, Bruno oferece-nos um final esotérico-sarcástico: Lúcia reaparece intermitentemente. Ou seja, torna-se aparição. Porém, só consegue aparecer em cabines de peep shows, naquilo que se torna num novo segmento de negócio das sex shops.
  • Dois Dedos no Tinto (2027), aforismos 
Depois de Lúcia, a Vendedora de Santuários, Bruno refugia-se numa herdade perto de Vendas Novas. Na altura, constava que se havia tornado produtor de vinho, face à desilusão que lhe havia provocado a literatura. A literatura, não. Mais as não consequências da sua literatura. Segundo apurámos, a reclusão de Bruno foi um acto de inacção: reflexo da inacção social face ao que havia denunciado. A sociedade havia abraçado a polémica pela polémica e continuava ávida de novas polémicas, não de mudanças.
Deste modo, tornou-se consumidor de vinho. Nunca produtor. Aliás, o desejo era o de não mais produzir.
Dois Dedos no Tinto foi o inteligente título que Nélson Baltasar (editor e amigo de Bruno) forjou para o último livro de Bruno na sua editora. O editor contou-nos que quando visitava o autor e o tema da conversa enveredava para a literatura, Bruno vociferava impropérios e dizia que se escrevesse, as linhas não mais sairiam do seu cérebro, apenas do fundo das garrafas de 75 cl. Molhava os dedos no copo e escrevia em guardanapos de papel frases soltas. Olhava para a garrafa e depois para Nélson, proferindo frases do género: "Esta não é minha. Põe aí no topo do guardanapo: escrita por Dão de 2007."
Da resma de guardanapos brotou este livro de aforismos, que contou com uma edição comemorativa e facsimilada em 2057, patrocinada pela Renova e que teve ainda uma edição limitada de 15 exemplares em embalagens clássicas, vendidos anonimamente em ilhas de hipermercados.
(continua a continuar a continuação da continuação aqui)

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