terça-feira, 11 de novembro de 2014

A Odisseia só com as partes de Ítaca

Ulisses e as Sereias de Herbert James Draper, c. 1909
Entretanto, em Ítaca:

ULISSES: Querida, vou sair.
PENÉLOPE: Aonde vais?
ULISSES: Vou comprar cigarros.
PENÉLOPE: Estás doido? Olha que isso mata! Espera lá: mas tu não fumas!
ULISSES: Estava a brincar! Vou só ali participar numa guerra e já volto.
PENÉLOPE: Ah, estavas a assustar-me. Vai lá. Aproveita e traz pão, já que vais à rua.
ULISSES: Prometido.
PENÉLOPE (a pensar): Ainda bem que vai apanhar ar. Já estou farta do pó e serrim que vem da carpintaria, sempre a construir cavalinhos de pau. Um, ainda vá que não vá, para o Telémaco brincar. Agora, cinquenta? Ainda se fizesse um aparador para o hall de entrada...

Vinte anos depois

ULISSES: Querida, cheguei!
PENÉLOPE: Quem vem lá?
ULISSES: Sou eu, Ulisses, Odisseus para os amigos, rei de Ítaca e teu marido.
PENÉLOPE: Espero que estejas a brincar. O meu marido morreu.
ULISSES: Mas... Mas... Eu sou eu.
PENÉLOPE: Ai, sim? Prova-o!
ULISSES (começa a tirar as calças): Os teus desejos são ordens.
PENÉLOPE: Puxa as calças para cima! Não é nada disso!
ULISSES: Então?
PENÉLOPE: Onde está o pão?
ULISSES: Chiça! Esqueci-me! Vou buscar imediatamente.
PENÉLOPE: Nem penses! Vai à sala e limpa-a.
ULISSES: Está muito suja?
PENÉLOPE: Está cheia de pretendentes ao teu trono.
ULISSES: Ah, já entendi.
PENÉLOPE: Antes de ires, diz-me porque demoraste tanto.
ULISSES: Não vais acreditar: no final da guerra andei às voltas com o barco, até porque ainda não inventaram a bússola, depois fui sequestrado por uma deusa que me violou durante anos, depois fui parar a uma ilha cheia de ciclopes e espetei um tronco no olho de um deles, depois vieram as sereias...
PENÉLOPE: Basta! Chega de desculpas! E a guerra?
ULISSES: Espectacular! Construí um cavalo de madeira... Aonde vais? Ainda não acabei!
PENÉLOPE: Vai tratar dos pretendentes. Falamos depois.

Enquanto se afastava, Penélope não pôde deixar de sorrir. Não era importante a justificação da ausência; era importante a felicidade que sentia pela presença. Era o homem ideal, sempre pronto para a bravura e para a honra e, sobretudo, sempre disposto a ausentar-se. Ulisses nunca havia reparado que Penélope nada percebia acerca das tarefas domésticas e os pretendentes, que se haviam instalado no palácio na sua ausência, começavam a colocar em cheque os dotes de Penélope, ela que há dez anos tecia a mesma peça de roupa.

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